Os problemas que o Brasil enfrenta e que motivaram os atos de protesto de junho não são consequência de gestão, mas do modelo de sociedade que o país tem. A frase foi dita, no mês passado, pelo ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, num seminário em São Paulo. De forma mais clara, ele quis dizer que o governo vai deixar de simplesmente administrar um modelo de sociedade que herdou. Vai tratar agora de mudá-lo.
O discurso é eleitoreiro e se dirige especialmente aos milhões de brasileiros que foram às ruas para reivindicar mudanças – imediatas, mas profundas. A primeira que o governo realiza é o programa Mais Médicos. Nos próximos dias, médicos – sobretudo, estrangeiros; quase todos eles, cubanos – estarão chegando a lugares distantes (ou nem tanto) do país, que não têm ao seu alcance um profissional para tratar de sua saúde. Serão inicialmente 400 e, logo, 4 mil, se o governo contornar ou afastar as reações levadas às barras dos tribunais.
Talvez seja o maior programa oficial de interiorização de médicos da história do Brasil. Talvez não dure muito e seu sucesso pode ser duvidoso, mas inegavelmente é um lance de astúcia. De fato, os médicos são os profissionais de nível superior que mais resistem a ir para as brenhas nacionais.
Seu padrão de vida (ou expectativa de padrão) e o elitismo às vezes arrogante e desdenhoso que se infiltra pela sua formação não o estimulam a aceitar desafios como esse. A atitude está sendo bem explorada pelo governo.
Com todos os problemas de desajuste e incompatibilidade que pode ter, a experiência deverá dar frutos imediatos. Ajudará a incrementar a popularidade em recuperação da presidente Dilma Rousseff. Mas está muito longe de representar uma mudança de modelo de sociedade. E menos ainda de enfrentar os enormes desafios que tornam a saúde pública (incluindo as grandes cidades, que concentram médicos) um caso de calamidade pública.
Em primeiro lugar, não houve sinceridade por parte do governo. Desde o início, o forte do programa era a importação de cubanos. O governo apenas fingiu que recuou diante da resistência da sociedade, em especial dos médicos. Com o ambiente mais calmo, colocou rapidamente em prática o plano inicial. Por isso, surpreendeu a opinião pública quando já anunciou a chegada dos médicos de Cuba.
No açodamento, talvez o governo não tenha lançado um olhar de fora sobre o golpe de mestre que imaginava estar dando para passar à frente dos que resistiam à sua iniciativa. O acerto com a OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde) seria um guarda-chuva para a esdrúxula conexão cubana.
Os médicos não viriam simplesmente para cumprir um contrato de trabalho, atraídos pelas vantagens oferecidas e pela oportunidade real de exercer sua profissão:viriam desempenhar uma missão humanitária, uma operação de ajuda ao país, como se o Brasil fosse um Haiti. O componente ético e de solidariedade ofuscaria a evidente violação da legislação brasileira sobre o trabalho.
Nenhum dos países que utilizaram esse esquema com Cuba tem o tamanho, a expressão e a complexidade do Brasil, com 200 milhões de habitantes espalhados por mais de 8 milhões de quilômetros quadrados e a sexta economia do mundo (cuja grandeza contrasta com uma injustiça social de país pobre), vivendo a mais longa democracia de toda a sua história republicana.
A falta de assistência médica nas áreas mais isoladas e distantes (e mais pobres) é dramática, mas é um problema de décadas, de séculos. Não autoriza um combate emergencial, precário, de cataclismos. O comando do programa teria que ser exclusivamente do Brasil. Outros países cooperariam com a busca internacional por médicos. Os brasileiros participariam da seleção de profissionais nos seus próprios países. A imigração seria em caráter temporário.
Aprovados por órgãos competentes, em regime de mutirão para a revalidação dos diplomas, seriam contratados diretamente, conforme as regras vigentes no Brasil. A contratação seria complementada por providências que impediriam esse médico de, aos poucos, se tornar figura decorativa nos lugares para onde fosse.deslocado.
É um absurdo que o Brasil envie o dinheiro devido aos médicos cubanos a Cuba, que devolverá aos profissionais apenas de 26% a 40% do valor que o Brasil lhes pagaria se a contratação fosse direta, numa relação profissional decente entre um governo sério e profissionais competentes. A justificativa ética dada ao convênio é tão crível quanto a condição democrática de Cuba. Nenhum país com autoridade internacional aceitaria participar de um acerto desses. É um circuito fechado, viciado e ilegal. Uma concepção que causa tanto estupor quanto incredulidade.
Nenhum médico estrangeiro e, menos ainda, nenhum contingente de médicos estrangeiros aceitaria esse esquema. O primeiro médico estrangeiro que chegou ao Brasil, e antes dos cubanos, o português Raul dos Reis Ramalho. Ele diz que não veio pela remuneração e suas vantagens, mas por ideal.
No entanto, sua filha mora em Salvador, na Bahia, onde se formou, 30 anos atrás, voltando a Portugal. Tem 66 anos e, aposentado, não trabalhava já havia dois anos. Talvez se estabeleça na capital baiana, com a família da filha e o filho. Ressaltou que os 10 mil reais, convertidos para menos de 4 mil euros, dificilmente atrairão outros médicos na Europa.
Ou seja: a mudança de modelo de sociedade, iniciada pelo programa Mais Médicos, talvez mude a conjuntura política, ajude a reeleição da presidente Dilma Rousseff e, até lá, minorará temporariamente os males do sertão brasileiro, de onde ela espera extrair muitos votos.
Por Lucio Flávio Pinto
Pensei que a vinda dos médicos cubanos fizesse vir a tona a questão dos medicamentos essenciais. A medicina cubana trabalha com uma relação de uns 600 fármacos essenciais. Com esse leque de remédios cuida de todas as doenças. A medicina capitalista brasileira pela qual medicamento é mercadoria, e mercadoria tem por objetivo o lucro e não a cura de doenças. Um laboratório que tiver que optar entre uma droga que cure uma doença e outra que a administre para o resto da vida, comercializará esta última e o pesquisador que descobriu a primeira aparecerá morto. Foi uma decisão tão inteligente que chego a duvidar que tenha levado esse problema em consideração. O modelo de medicina brasileira não pode ser interiorizado. Um médico brasileiro depende da tal "medicina diagnóstica". Teriam que levar para os grotões médicos e laboratórios. O médico cubano deve diagnosticar olhando a língua do paciente, apalpando-lhe o ventre e pedindo para ele dizer 33 enquanto ausculta-lhe os pulmões. E prescreve um dos 600 remédios com que o SUS trabalha. Foi uma medida tão acertada do governo que duvido que tivesse consciência disso.
ResponderExcluirO que mais me preocupa nesta história da vinda dos médicos cubanos é saber se eles são, de fato, médicos!
ExcluirQualquer médico que quiser trabalhar no Brasil, tem que prestar uma prova de reconhecimento de capacidade chamada "Revalida". Se um médico de Harvard com doutorado vier parar nestas paragens para ganhar real moeda, deverá prestar-se à prova do Revalida, e se não passar, não trabalha. Então, a primeira pergunta que surge é: por que vale para todos e não vale para os cubanos? A população tem o direito de saber se eles são médicos, de fato, ou agentes comunitários, apenas. Será que o governo ficou com medo de que eles não passassem por puro despreparo para o exercício da medicina?
A medicina brasileira tem plenas condições de fazer o que esses "médicos" cubanos se propuseram a fazer ao desembarcar no Brasil. Já provou isso por diversas vezes. Não vejo que o problema esteja no examinar, mas no diagnosticar e no tratar. Isso os médicos já dizem, há muito tempo. A complexidade da medicina de hoje não permite diagnósticos clínicos apenas. A tecnologia veio para aprimorá-la, tornando o diagnóstico mais preciso e com baixas margens de erro. E olha que, mesmo assim, há muitos erros diagnósticos! Mas sem esses recursos, as chances de erro são muito maiores.
No interior dos Estados brasileiros não fazemos medicina de verdade devido a falta de recursos. Se nas capitais já há inúmeras dificuldades, o que dizer do interior? O que um médico, por mais preparado que esteja, poderá fazer diante de um paciente com dor no peito se ele não sabe se é infarto ou esofagite? Exame clínico não exclui nem um e nem outro. O que os cubanos poderão fazer quando uma criança estiver convulsionando sem o remédio adequado para controlar a convulsão? Ou, ainda, como irá orientar uma dieta para alguém sem o conhecimento dos níveis de colesterol, triglicerídeos ou glicemia? Como diagnosticarão diabetes mellitus sem exame de glicemia confirmatório, mesmo com uma clínica sugestiva?
A rede SUS disponibiliza os medicamentos, mas nem sempre, ou melhor, quase nunca estão disponíveis na capital. No interior, certamente, a situação é bem pior.
É Fácil o governo dizer que o problema é a falta de médicos. O difícil é admitir que o problema central é a corrupção, a má gestão e a falta de condições de trabalho. Valorizar os médicos estrangeiros é desprezar os médicos brasileiros.
Olá, doutor Mário Lobato.
ExcluirObrigado pela oportunidade de dialogar sobre os problemas brasileiros neste belo Blog. Parece-me que o problema principal é que nosso país tem sido governado por gente que não sabe o que é um "projeto de país". Como um país pode viver sem ter objetivos de curto, médio e longo prazo? Antes de importar médicos cubanos não seria mais razoável providenciar saneamento básico para a população? E também providenciar para que a população se alimente de uma dieta que não seja patogênica? Parece até que o objetivo (oculto, já que não faz parte de um projeto explícito) é justamente criar um povo doente. E a gente sabe que um povo doente serve para alimentar e sustentar todo um poderosíssimo setor da economia. Pensemos apenas na doença cárie. Ela justifica a existência de mais de 200 mil dentistas e uma indústria diversificadíssima dos equipamentos usados na odontologia e os suplementos na forma de cremes dentais, escovas, fios, Listerines, etc. E uma medida tão simples como eliminar o açúcar da dieta acabaria com a epidemia e tornaria supérfluos tudo o que foi construído para combater as cáries. E o saneamento básico? Sabe-se que a cada um dolar aplicado em saneamento economiza-se quatro dólares em saúde pública. A mortalidade infantil cai, e a morbimortalidade geral também. Concluindo nosso país é movido a corrupção. É a síntese de múltiplas determinações corruptas. Um abraço doutor Mário. Parabéns pelo Blog. Estou a divulgá-lo.